O problema dos dados.

Hoje, devido às tecnologias de Big Data e Inteligência Artificial, tudo o que fazemos é registado. Com base nos dados recolhidos, através dos nossos telemóveis e milhares de outros dispositivos, vários governos e empresas sabem, não apenas onde estamos, com quem estamos, como têm acesso à nossas câmara, ao nosso microfone, gravam as nossas conversas, likes, sites que visitamos, mensagens que enviamos, e todas as informações pessoais que possa imaginar, desde doenças pesquisadas, que medicamentos ou objetos compramos, a como o que vemos (sim, é possível saber se nos anúncios ou nos vídeos do Youtube olha primeiro para o rapaz ou para a rapariga), até como nos sentimos. Toda a informação é armazenada em enormes bases de dados e, recorrendo a algoritmos, criam perfis de indivíduos com pouca ou nenhuma intervenção humana. Imagine um puzzle virtual, onde vão encaixando as peças das informações que recolhem sobre si, e de todos. Desengane-se se pensa que está a salvo caso não tenha smartphone ou conta nas redes sociais. Quem está ao seu lado tem, e a câmara e o microfone deles estão ligados.

Cada indivíduo tem o seu duplo datificado, utilizado para o persuadir a comprar produtos, votar em partidos, ou para fins políticos cada vez mais inquietantes. Esse duplo não inclui apenas informações práticas sobre si, também sabe o que sente e, com base nos seus comportamentos passados, consegue prever o que fará no futuro. Basta repetir a mesma ação algumas vezes para que o algoritmo aprenda com o seu comportamento. Mais, estes perfis têm uma memória ininterrupta, já que, ao contrário da memória humana, a deles nunca falha. Tudo fica registado, para sempre: se teve algum problema com a polícia, negativa no secundário, acidentes de carro, ou todas as vezes que não conseguiu pagar uma dívida. E tanto as seguradoras, como o banco que lhe dará acesso ao crédito à habitação, ou a sua empresa de recrutamento, poderão ter acesso a estas informações.

Os maiores ditadores da história teriam sido os primeiros a abrir a caixa tecnológica de Pandora. No tempo da ditadura, seria impossível colocar um agente da PIDE a vigiar cada cidadão, 24 horas por dia, 7 dias por semana. Mesmo existindo essa possibilidade, não havia tecnologia para processar toda a informação recolhida. Seriam 10 milhões de relatórios por dia para analisar onde cada cidadão foi, com quem esteve, as suas ações, e decidir o que fazer com essa informação. Agora, imagine que um agente da PIDE tinha acesso a todos os seus dados em tempo real. Por muito que dissesse que não era contra o regime, ele saberia, pelas suas expressões faciais ou pelo seu batimento cardíaco (dados recolhidos pelo seu relógio inteligente ou pulseira fit) que estava enraivecido no momento em que dizia aquilo. Ou seja, não só é possível ter acesso a todos os seus movimentos – onde está, com quem está, o que está a fazer e a dizer – como ao que acontece no seu corpo e na sua mente. Já não precisamos de seres humanos, nem para vigiar, nem para ler e analisar a informação recolhida. Os algoritmos de Big Data e a inteligência artificial fazem-no em segundos.

Isto não é ficção científica, nem é o futuro. As experiências para controlar grandes populações utilizando este novo tipo de tecnologia já estão a ser feitas, não apenas na China, como em vários territórios ocupados, que funcionam como laboratórios de experiências de tecnologias de vigilância para controlar milhões de pessoas contra a vontade delas.

Neste momento, além de não existir um debate público sério sobre esta questão, a maioria dos portugueses não tem consciência da quantidade de informação que está a ser recolhida a seu respeito, nem das consequências que a monotorização digital está a ter e terá na sua vida. E o problema não é apenas português, mas transversal a todos os cidadãos do mundo. Por exemplo, se a Alemanha ou a China tiver acesso a todas as informações pessoais dos cidadãos portugueses, dos políticos portugueses, e dos membros do exército português, a partir desse momento, Portugal deixará de ser um país independente.

É por este e outros motivos que protegermos os nossos dados das empresas, dos governos estrangeiros, e do nosso próprio governo, é uma das questões políticas mais importantes da atualidade e a existência de um debate público sobre esta questão é uma necessidade urgente. Tem-se falado muito em privacidade, mas o discurso da privacidade é uma falácia que esconde um problema mais premente: a discussão sobre a partilha dos dados. Porque a questão é simples: quem tiver os dados, terá o poder. Poder-se-á dizer que a propriedade dos dados é um roubo; poderá considerar que os dados deverão ser propriedade do Estado, eleito democraticamente, que irá distribuí-los de acordo com o interesse público; poderá alegar que os dados são de quem os recolhe, sejam entidades públicas ou privadas; ou que os sindicatos deverão começar a organizar-se para defenderem a utilização abusiva dos dados dos seus membros. Negar e proibir estas tecnologias poderia ser um caminho tentador, mas é o mais difícil, e provavelmente inglório. O caminho é muito mais o da aprendizagem, do que a negação. Dou-lhe outro exemplo: da mesma forma que uma empresa ou um partido podem criar um algoritmo para nos vigiar ou manipular através dos dispositivos digitais, também podemos criar algoritmos que vigiem e nos protejam das manipulações de empresas e partidos. Quando nos mostrassem uma notícia falsa para nos convencer a votar, ou um anúncio que explorasse os nossos preconceitos para nos persuadir a comprar, o nosso algoritmo bloquearia o anúncio ou avisar-nos-ia que era falso ou potencialmente manipulador. Neste momento, os engenheiros de Big Data trabalham sobretudo nas grandes corporações. Precisamos deles também do lado dos cidadãos.

Da mesma forma, tal como existe um sistema de fiscalização das contas públicas e privadas, também tem de haver auditorias aos algoritmos, muitas vezes responsáveis pelas discriminações mais bizarras. E tantas outras questões que devemos levantar e resolver. Com estas tecnologias, é possível criar o maior governo autoritário da história da humanidade. Vivermos como peixes vigiados e controlados dentro de um Aquário. Mas o fim ainda não está decidido. Dependerá do nosso conhecimento, debate público, e, sobretudo, das nossas ações.

NSA.

Rudy, I spy.

Trabalhos Modernos.

Hoje em dia, o poder económico não compra trabalho ou serviços, compra pessoas. No fim do século XIX, após longas lutas, foi criado o direito ao “repouso e aos lazeres, a um limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas”. Nessa época, findado o horário de trabalho, cessavam as obrigações laborais. Aos trabalhadores do século XXI, são-lhes exigidas um sem número de funções que não foram acordadas e ultrapassam largamente esse limite.

A primeira é muito antiga: a vassalagem. O chefe tirano “vê aqueles que o rodeiam requestando e mendigando constantemente o seu Favor; e eles (os trabalhadores) não só têm de fazer o que ele ordena como têm de pensar como ele quer (que eles pensem) e, muitas vezes, antecipar os seus pensamentos para o satisfazer. Não basta que lhe obedeçam, é preciso que lhe agradem, que se esfalfem, que se atormentem; e (…) têm de sacrificar o seu Gosto ao dele, Violentar as suas Inclinações e despojar-se do seu próprio Temperamento natural.”, como escreveu La Boétie, no seu Discurso sobre a Servidão Voluntária. Dentro deste tipo de chefia, inclui-se os que exigem serviços de companhia. Companhia para conversar, passear, almoçar, jantar, de dia, de noite, à semana e ao fim-de-semana. Nada contra a aquisição deste tipo de serviços. Mas devem estar devidamente contratualizados e não disfarçados de ócio, já que constituem exploração do tempo livre do trabalhador. São horas extraordinárias não remuneradas, e, portanto, ilegais. As pessoas que precisam de companhia, ou devem adquiri-la legalmente ou, uma via mais fácil para uns do que para outros, tornarem-se suficientemente interessantes, de meiguice, destreza ou intelecto, para não precisarem de o fazer.

A segunda exigência do poder actual descende da proliferação dos dispositivos tecnológicos de comunicação e, sobretudo, da internet: a disponibilidade ininterrupta. Um inquérito da Deloitte, em Abril de 2015, citado pela BBC, revelou que por escolha ou obrigação 71% dos quadros das empresas lêem mensagens de email à noite ou em férias e 76% consideravam que isso tinha um impacto negativo para a sua vida profissional e familiar. Na era da vigilância total, o poder obriga-nos à comunicação. Através do telemóvel, muitas vezes oferecido pela empresa, para legitimar o controlo, o trabalhador é coagido a responder aos e-mails, chamadas ou outras formas de comunicação, a todas as horas. Desta forma, a tecnologia e a internet em todas as coisas, como nos smartphones, relógios ou óculos inteligentes, que prometia liberdade e flexibilidade laborais, constituem uma corrente invisível, que nos obriga a estarmos disponíveis 24 horas, sem direito a descanso, vida pessoal ou familiar. O cérebro, compelido à disponibilidade ininterrupta, continua a trabalhar mesmo nos momentos em que não é solicitado. Vive em suspenso, na expectativa do telefonema ou do e-mail acontecer.

Outra novidade no contexto laboral é a compulsão pela aceleração e o orgulho no excesso de trabalho. Indivíduos subjugados exibem as suas olheiras e problemas neuro-gástricos como jóias refinadas. O deslumbramento pelo alcance de lugares de chefia ou posições sociais de prestígio impelem-nos à aceitação de condições laborais e tratamento deploráveis. Assim, o trabalhador não só é explorado sob o medo de ser despedido, como se constrange à autoexploração, acreditando que é livre e age em interesse próprio, ainda que os bens que resultam da autoexploração não sejam propriedade sua. Desta forma, encontrar-se-á, sempre, numa posição de submissão. E porque, como dizia Stevenson, “a devoção perpétua ao que um homem considera o seu trabalho só pode ser sustentada negligenciando todas as outras coisas”, estará cada vez mais atomizado, fragilizado, desprovido de laços de amizade e amor desinteressados.

Não é necessário ler estudos de psicologia, neurociência ou comportamento organizacional para saber que o repouso é a primeira condição para a lucidez. É fácil constatarmos que a hiperactividade e o trabalho ininterruptos não geram ideias, apenas inquietação, confusão, desorientação. A velha crença que trabalhar muitas horas é sinónimo de mais produtividade traduz-se num desinvestimento na tão amada eficiência e na criatividade. Já na época dos caminhos-de-ferro, Proust dizia que “seria breve a arte de uma época apressada”. Num século acelerado, doente, esgotado, quando o poder nos força a comunicar, precisamos do direito a desligar, de criar vacúolos de silêncio, de sair Em Busca do Tempo Perdido.

Sucesso.

O sucesso público cresce na razão directa da capacidade do indivíduo se produzir - na aparência, na eloquência, na inteligência, na simpatia. É um exercício dramático tão mais rentável quanto mais tempo durar a peça.

No fechamento das cortinas, o indivíduo sucedido é um indivíduo esgotado, incapaz de criar nucleoplasmas. Isto ocorre porque, após algum tempo, a diferença entre o indivíduo produzido e o espontâneo apresenta um valor insuficiente para sustentar a corrente eléctrica.

Sem estrutura.

Quando leio Nietzsche, Foucault, Deleuze ou Derrida, fico com um sentimento duplo de raiva e satisfação. Se, por um lado, fico contente por ver o que fizeram com as ideias do Stirner, por outro, entristece-me que nunca o referenciem dignamente. Sempre se tratou de não ser leal a ideias, não a pessoas.

Nobreza postiça.

Caros apologistas do requinte mórbido, muito arreliados com a popularidade, comprimento e grossura dos textos dos outros, criadores de ricas hierarquias intelectuais, que odeiam a sátira, essa técnica desprezível dos que não tomam sedativos face à opressão, não sei se vos agradeça o riso ou vos admoeste (fui-buscar-esta-palavra-porque-queria-dizer-repreender-de-uma-forma-benevolente-mas-sem-ritmo-literário) pelo enfado que os vossos textos me provocam. Na indecisão, deixo-vos um poema efeito-oxigénio-total-limpa-cérebros-rococó, para lerem enquanto escolhem palavras no dicionário ou fazem poses para as fotografias.

"Porque o povo diz verdades,
Tremem de medo os tiranos,
Pressentindo a derrocada
Da grande prisão sem grades
Onde há já milhares de anos
A razão vive enjaulada.

Vem perto o fim do capricho
Dessa nobreza postiça,
Irmã gémea da preguiça,
Mais asquerosa que o lixo.

Já o escravo se convence
A lutar por sua prol
Já sabe que lhe pertence
No mundo um lugar ao sol.

Do céu não se quer lembrar,
Já não se deixa roubar,
Por medo ao tal satanás,
Já não adora bonecos
Que, se os fazem em canecos,
Nem dão estrume capaz.

Mostra-lhe o saber moderno
Que levou a vida inteira
Preso àquela ratoeira
Que há entre o céu e o inferno.

António Aleixo, em "Este Livro que Vos Deixo..."

Chic a valer.

Aos meus leitores enraivecidos com o último texto,

Reconheceram-se logo, não foi? Porque vos ofende tanto chamar-vos parolos? Se substituísse a palavra por "chiques", iam adorar identificarem-se com aquelas barbaridades, não era?

E que tal preocuparem-se com coisas mais importantes na vida?

É que, quanto mais escrevem, mais me lembram o Dâmaso de Salcede.

Os parolos.

Os parolos são autoritários com os fracos e subservientes com os poderosos, ricos ou famosos.

Os parolos acham que são mais inteligentes do que toda a gente mas não há genialidade alguma que se lhe reconheça.

Os parolos ignoram o empregado e bajulam o dono do restaurante.

Os parolos adoram ostentação.

Os parolos sabem as notícias de fio a pavio.

Os parolos acham que conhecer as notícias é o mesmo que estar informado.

Os parolos acham que descansar é uma perda de tempo.

Os parolos não sabem divertir-se.

Os parolos só se relacionam com pessoas que lhes possam ser lucrativas.

Os parolos são incapazes de estabelecer relações livres de qualquer finalidade.

Os parolos veêm o mundo como um campo de batalha onde eles são as vítimas.

Os parolos não sabem criar amizades de igual para igual.

Para os parolos, há sempre quem manda e quem obedece.

Os parolos desconhecem a solidariedade.

Os parolos lêem, vêem e ouvem apenas os livros, filmes e músicas do circuito comercial das massas.

Os parolos não sabem apreciar a natureza.

Os parolos reduzem o sexo a um objecto de consumo.

Os parolos acham que os hambúrgueres dos restaurantes de comida rápida ou gourmet são melhores do que os feitos em casa.

Os parolos acham que são ricos por mérito próprio.

Os parolos não compreendem que se os pobres tivessem as mesmas oportunidades deles seriam tão ou mais ricos do que eles.

Os parolos exploram-se voluntariamente a favor do capital.

Os parolos consideram a alegria e a leveza de espírito sinais de ignorância.

Os parolos são acima de tudo consumidores.

Os parolos encaram a tecnologia como a panaceia para todos os problemas.

Os parolos confiam cegamente nos resultados científicos.

Quanto mais parolo, mais caro o telemóvel.

Os parolos acreditam que conseguem aumentar a produtividade dos trabalhadores através da repressão.

Os parolos adoram dar conselhos.

Os parolos querem que os filhos sejam aquilo que eles queriam ser.

Os parolos estão sempre obcecados com o estatuto.

Os parolos só sabem apreciar a arte no seu valor económico.

Os parolos vêem muito pouco para além da imagem.

Os parolos não criam narrativas.

Os parolos gozam com quem não é parolo.

A principal preocupação dos parolos é parecerem chiques.

A essência da questão.

-Durante três meses, fiz uma estatística para saber que perguntas as pessoas mais me fazem.

- Uma estatística sobre perguntas?

- Sim. O que as pessoas perguntam diz mais sobre elas do que as respostas que dão.

- Interessante. E quais foram as que ficaram nos primeiros lugares?

- A mais perguntada é “O que fazes na vida?”, seguida da “E ele?”.

- Curioso. E o que costumas responder?

- Amor.

- Amor?

- Sim, amor. E comida.

- Mas isso não responde à questão.

- Responde, pois. O problema é que, além de não saberem fazer perguntas, andam todos obcecados com as respostas erradas.

Banalidade do mal.

À saída do documentário sobre a Hannah Arendt:

- Não sei como é que ela teve coragem de dizer que aqueles Nazis não eram monstros mentalmente doentes mas apenas burocratas vazios de pensamento que desejavam ascender profissionalmente. Eles sabiam que estavam a matar seres humanos em série!

- Não sei como é que tens coragem de andar com roupas e telemóveis feitos por crianças em condições desumanas só para exibicionismo social. Tu sabes que estás a escravizar seres humanos em série!

- E alguns alemães ainda podiam ter a desculpa de não poderem desertar, com medo da morte. A tua, qual é?

Trabalhadores modernos.

Estes trabalhadores modernos são muito estranhos. Têm raiva, como os antigos mas, em vez de se virarem contra aquilo e aqueles que os oprimem, atiram-se uns aos outros. Insultam-se, pregam-se rasteiras, mal tratam-se. Depois, vão aos médicos da cabeça queixarem-se da vida. Em vez de lhes darem porcarias químicas para os sedar, a prescrição devia ter uma lista de músicas. A primeira era esta.


Angelic Upstarts, Solidarity (Live, Yugoslavia)

Amizade.

Quando conheço uma pessoa, tiro-lhe logo o atrelado. Tiro-lhe o nome, as roupas de marca, o carro, a casa, os equipamentos electrónicos e o resto dos acessórios. Se sem isso a pessoa me interessar, ouço-a com atenção e respeito-a. Se não tiver mais do que isso, não lhe dou atenção nenhuma. Não é por mal. Apenas prefiro fazer amizade com pessoas do que com objectos.

Maus tempos, arte e ficção.

Dizem que a arte e a ficção são necessidades menores em tempos de dificuldade. Mas é quando a realidade se torna insuportável que mais precisamos delas. Não é alheamento do mundo, é construção de um novo. Ao contrário do entretenimento, que é alienação, entorpecimento do pensamento, a arte é florescimento. Enquanto é criada e contemplada, não só liberta a vida da prisão, como revela novas imagens, novas formas de fazer e pensar. Não é irresponsabilidade. É alimentação de espaços de resistência.

Agora, nem eu vendo nem tu compras maçãs a um preço justo.

Houve um tempo em que as maçãs nasciam das árvores sem intervenção humana. Os ciclos naturais das águas, das terras, dos ventos e do sol reuniam tudo o que era preciso para que as maçãs brotassem saudáveis. Depois, começou-se a cultivar macieiras. O agricultor tirava sementes de uma maçã e punha-as na terra. Para continuar a ter cada vez mais maçãs, começou a tratar as árvores. Primeiro, podava-as e fazia outras coisas que as ajudavam a crescer. Mas, como esse procedimento não garantia que ele tivesse todas as maçãs que queria, começou a comprar uns produtos feitos em laboratório, que se põem nas macieiras para as maçãs crescerem muito rápido. Também experimentou uns pós para matar ervas e os bichos que costumavam comer algumas maçãs. Mas o agricultor queria ainda mais maçãs, maiores e mais baratas, por isso, em vez de usar as sementes da macieira, passou a comprá-las a empresas que as fabricam em laboratórios, que são modificadas geneticamente para crescerem rapidamente, sem a natureza a atrapalhar. São todas iguais e grandes. Há quem diga que essas coisas e sementes que põem na terra e nas macieiras contaminam o ambiente, provocam cancro e outras doenças muito complicadas, mas não é por isso que estou a contar esta história.

Nesse tempo, antes dos pós e das sementes criadas em laboratório, apanhava as maçãs das árvores, ou comprava-as ao agricultor, e comia-as. Ou não pagava nada por elas, eram uma espécie de oferta da natureza, ou pagava, vamos apenas exemplificar, três cêntimos por cada maçã, ao agricultor. Ele argumentava que eu lhe deveria pagar porque tinha tido o trabalho de as cultivar, proteger e apanhar. Primeiro, não concordei. Afinal, eu tinha-as de graça, podia apanhá-las, e ele agora dizia que as árvores eram dele. Mas depois entramos em consenso. Ele apanhava-me as maçãs e eu pescava, ainda que sempre me tenha recusado a domesticar os peixes, como ele fez com as macieiras. “Se não tens maçãs para colher, podes sempre colher laranjas ou pêras e, em cada época, vendes o que a natureza te oferece sem esforço. Não percebo porque queres vender só maçãs.” Começou-me a falar de um tal efeito de escala, mas ignorei-o. Era um bocado ganancioso, por isso devia ter qualquer coisa a ver com isso. Eu sempre preferi dormir a sesta a dominar o mundo, por isso, especializei-me nela e na arte de pescar no mar.

Um dia, cheguei a casa do agricultor, chamei por ele, e não obtive reposta. À porta, tinha uma folha A4, com uma morada, que dizia: “Para comprar as minhas maçãs, dirija-se ao meu distribuidor”. Que chatice, agora tinha que andar não sei quantos quilómetros para comprar as maçãs. Tanto as sardinhas como as maçãs iam ficar uma porcaria com o calor. Mas como só havia aquelas macieiras na terra (o agricultor apropriou-se de todas), lá tive que ir ao distribuidor. Finalmente, chego ao destino e, para meu espanto, vejo milhares de maçãs de todas as cores e feitios, cartazes gigantes e uns anúncios a piscar cores ácidas que diziam que aquelas maçãs eram as melhores do mundo. Tudo aquilo para vender umas maçãs? Quando tive de pagar sete cêntimos por cada maçã, percebi. Três cêntimos eram para o agricultor e quatro cêntimos para construir o parque de diversões das maçãs.

Mas nisso enganei-me. Quando encontrei o agricultor, uma vez, na praia, disse-me que agora só ganha um cêntimo por cada maçã, e que se não vendesse àquele preço, o distribuidor não lhas comprava. “Porque não voltas a vendê-las tu?”, perguntei-lhe. “Sabes, agora ninguém compra maçãs ao agricultor. É sempre ao distribuidor. Ele faz muita publicidade e convence as pessoas que as maçãs que ele vende são as melhores e as mais baratas. Não teria clientes. Ao menos, assim, garanto algum. E, sabes, tenho de as deixar lá e só recebo o dinheiro quando forem vendidas, o que significa que ele recebe o dinheiro das maçãs primeiro do que eu, e aplica-o no banco até mas pagar. Além de ganhar dinheiro com a venda das minhas maçãs, também ganha juros do meu dinheiro. E diz que aquilo tudo é para pagar o trabalho de as pôr nas prateleiras e de as promover. Que tristeza. Agora, nem eu posso vender nem tu podes comprar maçãs a um preço justo”. “É verdade”, respondi. “Queres que te ensine a pescar?”

Humanismo.

Sempre que há uma catástrofe humana, as redes sociais impregnam-se de frases muito belas. No outro dia, apareceu-me uma, no perfil falso criado para não perder a oportunidade de ler estas coisas, que me afectou profundamente: "Vejo humanos mas não vejo humanidade”. E lembrei-me logo do meu professor do secundário que uma vez me disse que devia ser “mais humana”, em resposta a uma observação minha que dizia que “não andava aqui para libertar a humanidade da opressão. Quanto muito, aliviava a dor de cabeça do meu colega de carteira porque tinha trazido um ben-u-ron.”

“Agora, aliviar todas as dores de cabeça deste mundo?”. “Mesmo que quisesse”, disse-lhe, “que não é claramente o caso, não ia conseguir, porque o que cria dores de cabeça a uns, não cria a outros. E eliminar uma causa de dor de cabeça de uns, ia dar muitas dores de cabeça a outros. Por isso, em vez de ter a pretensão de saber e querer eliminar as dores de cabeça de toda a “humanidade”, resolvo as minhas e as do colega do lado. Pode ser que outros, ao verem como resolvi a minha, resolvam também a deles, se quiserem. Valha-me obrigá-los a resolver aquilo que eu acho que são as dores de cabeça deles! Inclusivamente, professor, sei de muita gente que precisa da dor de cabeça. Li, anteontem, que há muitos escritores que não conseguem escrever sem ela. Nos dias sem dor de cabeça, vão para a praia e põem-se a namorar. Além disso, nos dias seguintes à inactividade intelectual, ficam com uma grande dor de cabeça provocada pela frustração de não avançarem no trabalho.

E quem é que define o que é ser “mais humana”? É o professor? E se eu achar que sou mais humana por não querer que todos os “humanos” sigam a minha ideia de “humanidade”?

Já o estou a ver num alto palanque a recitar o novo “código da humanidade” e a selecionar quem fica de fora das determinações específicas.“Este não é humano, este é quase humano, este é meio humano.”

Se calhar é por isso que agora vendem tantos comprimidos para as dores de cabeça. Ou porque nunca somos suficientemente humanos ou porque, digo eu, cansamo-nos de ser demasiado humanos”.

Belos tempos.

Tudo o que eu não fui, tu serás assim.

Entristece-me ver crianças exemplares. Têm as melhores notas, tocam piano, lêem antes do tempo e “já sabem falar de política e ciência”. O adestramento começa cada vez mais cedo. Os pais, sedentos de prestígio social, fabricam bonecos à imagem dos seus arrependimentos. Os filhos têm que ser os mais inteligentes, famosos ou bonitos, porque era o que eles queriam ser mas não conseguiram. As crianças, usadas como propriedade e subserviência garantidas, não só lhes dão a sensação de eternidade, como lhes satisfazem as necessidades de amor, ego e violência. Preciso de atenção? O filho dá. Preciso de prestígio? O filho dá. Preciso de exercer autoridade em alguém? Mando no meu filho. E a esta degradação intelectual, roubo da espontaneidade, e da vontade própria, chamam educação. Seja por coacção, seja por manipulação, os adultos procuram que os filhos sejam extensões obedientes e melhoradas de si próprios. Só não sei se eles se apercebem que, assim, não só criam seres frustrados e deprimidos, como estão a reiniciar o ciclo de violência social do qual foram vítimas toda a vida.

A liberdade deles.

Tenho uns amigos do governo que falam muito em liberdade política. Quando me vêm com essa conversa, pergunto-lhes: Liberdade de quem? Para fazer o quê? E chego sempre à mesma conclusão. A liberdade deles decidirem a que leis devo sujeitar-me. É que, quanto mais exercem a liberdade deles, menos vejo a minha. No Estado "livre", onde somos obrigados a fazer milhares de coisas, podemos optar entre as alternativas que o poder nos dá, que são nenhumas.

Zettabytes.

The Modern Lovers, Modern World.

So share the modern world with me
'Cause I'm in love with the U.S.A. now
I'm in love with the modern world now